sexta-feira, 10 de março de 2017

A Literatura está mesmo em perigo?

08.03.2017
Antonio Carlos Ribeiro*

Eliana Yunes dedicou sua vida à leitura – sempre mais às dos outros, a partir das próprias
– atuou como docente, pesquisadora no Centro Regional para el Fomento del Libro en
América Latina y Caribe (CERLALC), elaborou a proposta do Programa Nacional
do Livro e da Leitura (PNLL), durante sua atuação na Biblioteca Nacional, fez
pós-doutorado na Köln Universität (Alemanha, 1991), na Sorbonne (França, 2006)
e Oporto (Portugal, 2014). Viveu um conjunto de experiências e amealhou uma
folha de serviços, partilhadas em salas de aula de universidades latino-americanas
e europeias, se tornando uma referência.

Eliana Yunes (Cátedra UNESCO de Leitura, iiLer, PUC-Rio) ministra palestra sobre literatura
(Fotos: Antonio Carlos Ribeiro/UFT)

Este foi o tema suscitado para o debate com alunos de graduação, pós-graduação e docentes pela Professora Eliana Yunes, do Departamento de Letras, do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) e da Cátedra UNESCO de Leitura, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), realizado dia 6 de março no auditório do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Câmpus de Araguaína.

Esta pergunta de Tzvetan Todorov, explica Eliana, é uma indagação sobre a leitura, que é a base da literatura. Se houver o perigo, ele se encontra aí! Essa dúvida se sustenta ao sabermos que o Programme for International Student Assessment (PISA) avalia estudantes em Ciências, Matemática e Leitura, um conjunto de saberes transversos, e os coloca em contato com música, literatura e paródias.

O fato de cursos de Letras estarem sendo fechados em diversas universidades significa que literatura é meramente intelectual, ou para ampliar a cultura? Ou responde a um conjunto de anseios? Literatura não é verso para sensibilizar meus ouvidos numa língua, que posso entender com a mente! Até porque há os afetos?! A arte é o que nos convoca para a vida! Quando acharmos que arte e literatura são só enfeite, estamos numa penúria intelectual absoluta, alfinetou a linguista!

A leitura precisa modificar a vida! Ela é uma forma de conhecimento que extrapola os mecanismos imediatos desse conhecimento. Por isso é que a criança pede: ‘conta de novo!’ Na verdade, ela segue em busca de uma inquietação suscitada pela leitura. Na idade adulta somos capazes de distinguir a história do discurso por baixo do texto.

José de Alencar usa esse recurso em Iracema, a virgem dos lábios de mel como justificativa para explicar as duas etnias com papel fundamental na fundação do Brasil. Ele ficcionaliza o encontro das duas culturas para explicar a emergência de uma nova nação. Eis a razão dele começar o romance com a mãe morta e depois mostrar o filho sendo educado por Martim, o pai, em Portugal.

Literatura não é inocente

Para ensinar é preciso estar inserido pelo conhecimento na vida (Sitz im Leben = sentado na vida), através do qual o leitor se apossa dos saberes à sua volta, os vai ajustando pouco a pouco, até que surja certa harmonia, com nova plenificação de saberes, a cada leitura. Para entender a seca no Brasil é preciso ler Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e O Quinze, de Rachel de Queiroz. Ao ler, se consegue sentir os efeitos da seca na vida. Ao ler, escutar e acompanhar um livro, uma música ou um filme, eles me ensinam a ler a vida do povo daquele lugar, seus dramas e cotidiano.

Quando temos sensibilidade para ler o momento político que vivemos, o que essa realidade nos mostra? A falta de justiça, de acesso dos pobres aos bens e serviços, e consequentemente, às necessidades mais prementes. Leitura profunda e para a vida nos ajuda a ter discernimento. E isto é bem diferente do que o acontece com o gado sendo tangido para o matadouro.


Freud nos ensina que o maior ensaio para a capacidade da leitura, que se agiganta frente à realidade, é o que aprendemos na infância, o brinquedo. Ler supõe sensibilidade, ética, coerência, valores, transparência. Por causa desse conjunto de predicados que desenvolvemos durante o aprendizado da leitura é que percebemos como a psique humana precisa da leitura para postar-se com toda a liberdade diante da realidade. Por esta razão, é que a leitura precede a psique, e esta a escrita. Escrever supõe a leitura - essa absorção intensa, esse refletir profundo, para colocar na grafia, no verso, na vestimenta - um modo se comportar. É uma interpretação do mundo.

São as minhas escolhas. Quando a mulher se expressa no Novo Testamento com a frase ‘não conheço homem algum’ (conóscere – cognoscere = ser com, está comigo), ela na verdade diz: ‘não tenho em mim nenhuma experiência de homem’. A pessoa que tem certezas absolutas se sente o dono da verdade! A cada encontro, um esbarrão!

É Félix Guatarri que afirma que não somos sujeitos em estado puro. Somos sujeitos entre sujeitos. O que frequento deixa algo em mim. São lugares diferentes que me enriquecem e me dão singularidade. Erramos ao tentar colocar nova felicidade no portão alheio.

O Conflito das Interpretações, de Paul Ricoeur, nos ensina que entre nós e o mundo (realidade) há um abismo. O mundo pode ser do jeito que vejo ou como os outros o veem. O que importa é que nos disponhamos a ver o mundo com o outro. Insistir em ver o mundo apenas como nós o vemos, é mimesis. Conhecimento nasce da escuta, que deve seguir a reflexão, e esta por sua vez, deve seguir o imaginário.

Durante a ocupação da França pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, um oficial alemão, diante de uma retratação do painel Guernica, teria perguntado a Picasso se ele havia feito o famoso e trágico painel, no que rapidamente foi respondido pelo pintor: "Não, foram vocês!" Décadas mais tarde, a Profª Yunes estava com um grupo de criança na exposição do pintor cubista espanhol. E perguntou a elas: o que vocês estão vendo? O que mais lhes chama a atenção? Um menino respondeu: ‘vejo um mundo de cabeça para baixo’. Diante dessa expressão, ela entendeu que a leitura das coisas não é apenas o conhecimento das postulações teóricas. O que se tem para dizer precisa de coerência, sustentação. É quando cada um de nós se transforma e isso tudo traz o aprendizado.

Para entender uma situação como a da tragédia Romeu e Julieta, escrita por William Shakespeare no fim do século XVI, é preciso indagar: o que o Estado faz com a vida das pessoas? Qual a mensagem que você está construindo com os estímulos e conhecimentos que tem? É a literatura que nos traz o relato do que aconteceu naqueles tempos remotos. E só através delas nossos contemporâneos são capazes de perceber o absurdo que se passa aos seus olhos.

O direito da Literatura não é reformar o direito de ver o mesmo com outros olhos. A literatura nos dá o poder de reconhecer, de relacionar, de interpretar. Deveríamos ser leitores de literatura primeiro. Literatura é um rasgar de horizontes! A partir dela se vê mais longe! E a leitura é a forma como nos movemos dentro da Literatura. É Martha Nussbaum, uma filósofa que defende a necessidade da literatura, especialmente em livros como Justiça poética e A fragilidade da bondade.

A tarefa do professor é professar suas leituras! Ao se dispor a Educar (ex-ducere = sair para fora, guiar, conduzir, liderar) ele expressa seus saberes em palavras, conferindo aos substantivos a missão de descrever a substantia. É por isso que a criança chuta a canela do outro e grita! Porque ela não tem palavras! Esse é o papel da literatura por meio da leitura!

Enquanto houver homens, precisaremos de narrativas, histórias, literatura, cinema e fotografia!

*Mestre, Doutor e Pós-Doutor (PUC-Rio) e Pós-Doutorando (PPGL-UFT)

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